segunda-feira, 30 de março de 2009

memória

memória

as manhãs tinham um hálito agradável, um odor a verde e a feno, terra húmida mas serena, impávidos insectos num repouso de folhas e caules e teimosas raízes que subiam árvores e muros e paredes onde viçosos musgos escondiam experiências, instintos e vidas trazidas por ventos brancos e alimentadas por chuvas sem branco. terra revolta, à margem dos canteiros floridos, feridas com sulcos de carruagens, rodas e flores, ouro de sol, prata de fios-d'-água, beijos de saudades, beijos-em-flor, pedras nuas expostas à luz, dispostas a tudo.
do mar se via a terra.
subíamos a ladeira descalça do monte, crepitando inocentes passadas rumo a um previsto e desejado desconhecido. haviam esperanças nas meninas e nos olhos, esbugalhados calhaus, saltitões quietos, palavras sem nome, gritos de silêncio em canto alto; desunidos ramos secos, pasmo espasmo de mãos agarradas à terra.
da terra se via o mar.
ondas, espuma, areia nos cabelos, seiva negra de tão pura sujidade. navios -quem os inventou?- traziam maresias com memórias de nevoeiros descobertos, gelos derretidos em fogo, quentes frios arrepios; infinita saliva.
arremessados paus, galhos de velas desfeitas galgavam margens de asfalto, botes de raiva afundavam águas onde nenhuma caravela nadara, nenhum incauto marinheiro guerreara; paraíso do peixe, sombra do risco, subterfúgio da alma. gaivotas a picar a pele do sonho, vistes?
sim, também nasciam ondas de cravos vermelhos de insuspeitas fontes, promessas de ventos em mudança, um riso sorriso nas palmas das mãos, armas floridas carregando costas nuas, bandeiras desfraldando a liberdade do vento; um rio de gente a caminho.
e o rio unia terra e mar.

***

vieram carros do combate, sem combater o futuro, arrasado o passado, vieram tantos e tantas, anónimas vozes e gritavam, expeliam o silêncio dos corajosos, repeliam a força à força de palavras como estas: que nojo vos turvara a mente?
que carinho nos transformou em gente?
ai!, quem souber desenhar almas que conte! que digam a verdade mentindo, mintam dizendo, enganem a memória, enterrem a história; o mundo vive para além disso. embrulhem as alegres lágrimas em sacos dos vossos lixos; rompidos, incessantemente rompidos, desaguarão os limites da imagem: recordação, tu nunca mentes!
que recordação vos magoou, ó gentes?
voltaram todos do monte, acorreram das serras e dos vales dos vossos sonhos, vieram voando em núvens de desejo, trouxeram a morte e o beijo, carregaram o espinho e a rosa, acordaram o trovão e a corda, redes, pescadores, rezes, fomes a cheirar ao pão; amassaram os caminhos, corpos pequeninos e passarinhos, abutres também: se a presa é oferecida que mais vos falta para a festa?
e depois do adeus, da solene despedida do morto anunciado, partíamos, ai!, suprema alegria voar o barro, dissipar o catarro, esticar o torpor, matar, sim, matar o ditador!
que morte vos mudou, gente?
sem medos, povos das selvas montes serras rios mares, para além do crime, dizei-me:
que falso carinho vos devolveu a crença?

***

nómadas do esquecimento.
sobre as águas do inferno lavais as lembranças e escolheis o fogo do paraíso para festejar o esquecimento com que suportais a vida: até quando? homéricos poemas à laia de discurso, palavreado belo do engano, mística de cómodo olhar, esbracejar da lassidão; como é breve o tempo que há-de vir, como inutilizastes a memória!
sedentários do nada!
acordávamos felizes. então, sempre que o mar nos trazia um naufrágio de esperanças, acorriamos às areias em busca do remoinho; agora, destruída a caixa de Pandora, afundais-vos em terra solta e das ondas fizestes sepulcros. e com cruzes desenhais madeira.
carpinteiros do artifício!
esquecestes as horas da boa-espera, as madrugadas a fio, as auroras da navalha. esquecestes igualmente as praias e as rochas e as maresias; seguis caranguejos a caminho da solidão. Narcisos sem rumo, espelhos falsificados, anúncios da desgraça.
construtores da armadilha!
longe, muito longe do que é aqui, resistem prados e versos: nem as rimas vos salvarão!
que fizestes das palavras?

***

arautos dizem esquecei! lembrai-vos sempre disso!
recuperai memória, criai história, fazei acontecer! tornai ao âmago das coisas, alimentai-vos do sopro, reconstrua-se a carne: não vos falo do verbo e muito menos do adjectivo, Vaidade! Falo-vos da oração completa: voltai a desenhar as letras...


LN, 30 Março 2009

quarta-feira, 25 de março de 2009

A propósito dos 200 anos das Invasões Francesas

A HISTÓRIA DO “MOLETE”
Duzentos anos de vida.


Apresentado por inteiro ou aos “nacos”, todos nós o comemos e faz parte dos nossos hábitos alimentares diários, com mais ou menos sal, é o pão.
Há uma variedade imensa de tipos, uma das quais é o “papo-seco”, o qual cá por terras do Porto, é mais conhecido como “molete”.
Quem já não disse e ouviu dizer:
- “Ó Mãiee, dá-m’um molete” Tou co’fome!” – e como resposta – “Ó rapaz, bai à padaria e pede pra t’abiarem meia dúzia de moletes!”
Apesar de ser um vulgar tipo de pão, o molete pode orgulhar-se de ser o mais conhecido, embora a maior parte das pessoas que o comem, não saiba a sua história e o porquê de assim se chamar.
Como é do conhecimento geral, o Concelho de Valongo, no Porto, foi e é uma zona muito importante de panificação e moagem, como são exemplo disso os moinhos de água do Rio Ferreira, ainda existentes, e alguns recuperados. Para além disso, temos o “Pão de Valongo”, vulgarmente conhecido como Regueifa.
Aquando das Invasões Francesas, em 1809, as tropas invasoras estiveram estacionadas em Valongo, tendo nessa altura havido falta de cereais, pelo que houve necessidade de se fazer racionamento do pão.
A forma adoptada foi a de diminuir ao peso, reduzindo o tamanho do pão para metade.
Essa medida foi tomada pelo General francês que comandava as tropas invasoras, que dava pelo nome de Moulet.
Daí o povo ter baptizado aquele pão com o nome de “molete”, aproveitando o nome do General que “decretou” a diminuição ao peso e ao tamanho do pão, para dessa forma poder alimentar os seus soldados.
E é esta a história dum tipo de pão que é conhecido por papo seco, mas que cá pelo Porto, embora já a cair em desuso, lhe chamam “molete”.

eduardo roseira

uma velha casa...

A Filomena Fonseca
autora do livro de poesia
"Os Degraus da Casa"

uma velha casa
um degrau que rangia
as suas memórias.

era a poesia
a passar!

eduardo roseira
JF Bonfim-Porto
21-Março-2009

quarta-feira, 18 de março de 2009

VESTÍGIOS DA MADRUGADA

nasce um novo dia.
o velho sol mostra
de novo os raios.
aos poucos a sua luz
vai revelando
o que da noite resta.

numa outrora parede alva
nasceu um multicolor
e disforme grafite
que reclama
ingenuamente,
paz amor.

de cá para lá,
uma puta de mini-saia,
passeia a celulite.
o tempo ronda as seis
e ainda continua no engate,
a ver se esfola mais um pastor.

nos passeios
junto a montras ricas,
vêem-se vómitos/álcool
espalhados pelo chão.
aqui e mais além,
pequenos montículos
de merda de cão,
garrafas partidas,
latas calcadas,
pedaços de papel e cartão,
seringas,
restos de pratas e limão.

um sem abrigo
engana o sono num canto.
um ébrio de gatas,
em hálito/fel
lança um enorme
arroto de desencanto.

mais além,
cabisbaixo,
um tipo com cara
de foda mal dada,
regressa a casa
ao encontro da sua
querida mulher,
como se não fosse nada...

aos poucos,
a cidade nasce
para mais um dia
de vida apressada.
das estações.
das paragens.
das posturas.
surgem pessoas...
pessoas...
muitas pessoas!...
que passam sem dar conta
dos vestígios da madrugada.



eduardo roseira
VNGaia
11/Agosto/2001

domingo, 1 de março de 2009

Filosofia

Quando o tempo tem tempo e chega a tempo
de me dar algum tempo pra pensar,
procuro ver a luz do pensamento
que mora numa casa singular.

Desvelo com prazer cada momento,
num silêncio profundo, a meditar.
Mas se a busca me traz só ar e vento,
deixo o vento sair, e apesar

de ficar sufocado no deserto,
um deserto de ideias a pairar,
procuro reparar, ver de mais perto.

Por método, princípio, rigor:
sob o peso da aragem, a pulsar
pode haver uma ideia com valor.

Domingos da Mota

O valor qu'isto tem

Na complexa realidade humana, os objectos, as circunstâncias e os acontecimentos, os factos, na sua relação com os homens, adquirem um significado diferente, uma realidade de natureza diversa: tornam-se bons e maus, agradáveis e desagradáveis, belos e feios.
Ao humanizar as coisas, o Homem cria e atribui-lhes valores. Recusando a passividade perante a realidade, assumindo as suas paixões, os mais inconfessados interesses, os sentimentos, tomamos posição perante o mundo e perante os outros: valorizamos, na impossibilidade de sermos neutros e objectivos, idealizamos a realidade bruta e fria. Criamos valores: recriamos o Homem.
É certo que não podemos quantificar os valores, porém podemos criar uma hierarquia de valores, individual e socialmente. Os indivíduos e as sociedades dão origem a escalas de valores que se baseiam sempre numa bipolaridade universal, ou seja, a cada valor positivo corresponde sempre uma valorização negativa, separando e opondo o bem e o mal, o justo e o injusto, o rico e o pobre.
Convém esclarecer que o valor que existe nas coisas não é o mesmo que o valor que estas adquirem na sua relação com o Homem. Um determinado objecto tem o valor próprio das suas características, do seu peso, da sua cor, do seu sabor. Porém, só adquire valor para nós quando se humaniza, ganhando propriedades que não existem no objecto em si. Adquire um valor humano quando para além de ser branco ou preto é igualmente belo ou feio. Dito de outra forma, o objecto ou as coisas, não valem o que valem, mas valem o que para o Homem valem.
Reconhecida a impossibilidade de sermos indiferentes ao que nos rodeia, evidenciada a necessidade de intervir e tomar partido, inevitavelmente introduzimos a nossa parcialidade na realidade. Valorizar é exactamente isso: tomar partido.
Daí a inevitável necessidade de confrontar valores, mesmo correndo o risco de colocar em causa a validade da nossa hierarquia de valores. Deste confronto positivo e do desafio que acarreta, no respeito pela diferença e pluralidade de valores, sairemos enriquecidos, mais capazes de melhor valorar. Utilizando os nossos critérios de preferência, a experiência adquirida e exercitando a razão, fundamentamos a distinção de superioridade de um determinado valor em uma determinada circunstância. Assumindo a responsabilidade das opções tomadas e aceitando como inevitável a influência (positiva e/ou negativa) dos critérios mais ou menos universais do social que nos envolve.
Aceitar a tarefa de pensar nesta influência do real e do social na nossa escala de valores é condição fundamental para irmos ao encontro da descoberta de valores universais: -onde quer que eles estejam!